Cuniculantropia III

Acabo de voltar do congresso da Consumer Culture Theory, linha de reflexão praticada usualmente em escolas de negócios, que estuda consumo pela ótica cultural. O congresso da CCT é tão avançado que encoraja pesquisadores a apresentarem seus achados científicos não apenas em forma de artigo, mas também em forma de poesia e arte. No ano passado, além do filme Dialectical Dildo, apresentei dois trabalhos artísticos, um ready-made e um conjunto de três esculturas em coautoria com o ceramista tiradentino Francisco Alessandri, que receberam os títulos de Cuniculantropia I e II.

Neste ano, o congresso aconteceu em Anaheim, na Califórnia, onde apresentei, além de um artigo científico intitulado “Humility of Things: Analyzing Material Culture’s Salience in the Erotic Industry”,  meu terceiro esforço para expressar em forma de arte os achados de minha pesquisa sobre consumo erótico feminino que se referem às transformações atravessadas tanto pela consumidora quanto pela indústria erótica. Trata-se de um relacionamento mutuamente constitutivo e, portanto, dialético. Do relacionamento entre consumidora e produtos eróticos, ambos emergem transformados.

Cuniculantropia é um neologismo inventado por mim como metáfora conceitual para essa transformação. A cuniculantropia, se entendida ao pé da letra, se refere à transformação de pessoas em coelhos, da mesma forma que licantropia se refere aos lobisomens. Aqui, o emprego da palavra não é literal evidentemente, mas sim uma interpretação poética da consumidora transformada por sua interação com a indústria erótica.  O coelho é usado como alegoria para sexualidade, já que dá nome a um dos produtos eróticos mais conhecidos, o vibrador do tipo rabbit, e é um animal notório por sua capacidade reprodutora.

Em meus trabalhos artísticos, minha intenção tem sido estender a metáfora do textual para o visual. A quimera originada da cuniculantropia corresponde à consumidora indelevelmente transformada por sua participação na indústria erótica e, também o inverso, a indústria transformada pela consumidora.

Utilizei a técnica da collage e, por isso, tenho muito a agradecer à minha amiga, designer  e artista Marcia Albuquerque, que me deu uma incrível aula de collage. A collage é a técnica (ou o meio) perfeita para expressar teorias neomaterialistas, como a Teoria da Assemblagem, que pressupõe que os cidadãos nas sociedades de consumo são assemblagens tecnossociais formadas pela pessoa e pelos objetos materiais que da sua vida fazem parte. Expressa também a famosa teoria do Eu Estendido, de Belk, que entende que objetos de consumo muito relevantes para os indivíduos passam a fazer parte de sua identidade. Ajudam a construi-la e a expressá-la.

Minha collage Cuniculanthropy III foi um sucesso! Muita gente comentou e elogiou. Surgiram interpretações que me fizeram perceber aspectos do meu próprio trabalho que ainda me eram inconscientes. Uma colega sugeriu que todos os alunos de doutorado tentassem exprimir suas pesquisas em forma de collage para aprofundar sua compreensão do que eles próprios estão fazendo.

Esta collage funciona nos dois sentidos verticais, cada um oferece mais camadas de significados para o observador. O antropólogo Richard Parker, ao estudar a identidade sexual brasileira, constatou que, enraizada em nossa desigualdade entre gêneros, está a noção da mulher enquanto virgem e enquanto puta. A primeira representa o controle masculino sobre a sexualidade feminina. A segunda, ao mesmo tempo, valida a masculinidade e a desafia. Uma de minhas mulheres tem os braços cruzados em santidade ou adoração; um coração sagrado e vibrante que ela guarda como tesouro. A outra mulher tem chifres feitos de conchas; uma armadura de pequenas frutas vermelhas. Estão interligadas pela orquídea de Georgia O’Keeffe. Que também cobre os olhos da consumidora-santa. Ou lhe servem como óculos. Um sorriso suculento com sabor de goiaba. Outro sorriso quebrado, cubista, assanhado. Asas que saem dos quadris. Instruções para construir um coelho se transformam em mais asas, estas com a transparência das de um inseto. Um homem também faz parte da assemblagem. Você consegue identificar os produtos eróticos nesta imagem? Don’t forget to play.

cuniculantropia na loja de molduras
Ainda na loja de molduras

cuniculantropia na loja de molduras (2)

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No congresso de CCT, Dineyland Hotel, Anaheim, EUA

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2 Replies to “Cuniculantropia III”

  1. Luciana, adorei o artigo e a obra de arte! Você é uma artista poderosa! Deu-se conta disso? Don’t stop the dance… se é que você me entende. rsrsrsrs
    Congratulações. abraços, Rogério.

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